Por muito tempo, coerência foi tratada como um mantra no branding. Repetir tom, reforçar mensagem, alinhar todos os pontos de contato para que tudo estivesse milimetricamente coordenado e a marca se tornaria forte. Mas o mundo mudou, e a promessa de que controlar tudo seria suficiente para sustentar relevância também.
Coerência não é repetição
A questão é que marcas não vivem em vácuo. São sistemas dinâmicos inseridos em contextos não lineares, atravessados por forças culturais, sociais, políticas e comportamentais. São entidades complexas, não estruturas fechadas. O problema começa quando se tenta simplificar essa complexidade em nome de uma suposta coerência absoluta. O medo da contradição produz marcas rígidas, engessadas e, no limite, irrelevantes.
Coerência não é — ou, pelo menos, não deveria ser — rigidez. E, na lógica do pensamento complexo, não significa repetir sempre a mesma coisa, do mesmo jeito, para todo mundo. Significa manter um eixo estratégico vivo, capaz de sustentar diferentes linguagens, adaptações e contextos sem perder o fio condutor. Como diz Edgar Morin, “unir sem reduzir”: reconhecer a multiplicidade sem precisar nivelá-la.
Marcas são feitas de tensão
É justamente por não aceitar essa multiplicidade que tantas marcas acabam presas. Presas a uma persona, a um tom, a uma cartilha. Como se a marca tivesse uma voz única, imutável, incapaz de dialogar com realidades diversas. Mas se esquecem de que público é múltiplo. Os canais são distintos. Os tempos mudam. E o que parece coerência de fora muitas vezes é, na verdade, incapacidade de adaptação.
As marcas precisam se reconhecer como parte de um todo em constante movimento e não como centros fixos em torno dos quais tudo deve orbitar.
Essa é a diferença entre controlar e responder, entre uniformizar e construir sentido. Marcas vivas são aquelas que reconhecem suas contradições e as administram de forma consciente, estratégica e honesta.
Da rigidez à consistência estratégica
É possível, sim, sustentar coerência em meio à diversidade. Mas não dá mais para confundir coerência com rigidez. A alternativa está na consistência estratégica: manter um eixo claro, mas com abertura para adaptação. Sustentar seus posicionamentos com profundidade em contextos distintos com flexibilidade narrativa não torna uma marca confusa. É, na verdade, sinal de que ela está viva. E, sobretudo, de que é estratégica.
No fim das contas, o que está em jogo é a qualidade da relação que a marca é capaz de construir com o mundo. E isso exige mais do que um bom brandbook: exige presença, escuta, adaptabilidade e, acima de tudo, uma visão estratégica que entenda a complexidade como parte da equação e não como ruído a ser eliminado.
Samantha Schreiber
Sócia da VOZ Colab
O rebranding da Chiquinho Sorvetes gerou controversia. Talvez por ignorar o valor do próprio objeto desse movimento: a marca.
A Chiquinho é um caso exemplar para um setor comoditizado. Qualquer um faz sorvete. Para crescer como eles fizeram, era preciso o encadeamento de diferentes dimensões estratégicas.
Operação altamente estruturada e padronização de qualidade
Fundada há 45 anos, a Chiquinho iniciou a estruturação do seu modelo de franquias em 2010, com foco na verticalização da operação. “A empresa adotou um processo padronizado de fabricação de sorvetes, que hoje são produzidos em uma fábrica terceirizada e distribuídos aos franqueados em embalagens semelhantes às do leite longa vida, o que reduz os custos logísticos. O sorvete expresso é processado em máquinas exclusivas, garantindo qualidade e consistência no sabor.”*
Presença fora dos grandes centros e afeto territorial
O sucesso da Chiquinho se deve, em grande parte, à sua presença massiva fora dos grandes centros urbanos: cerca de 80% das lojas estão no interior do país, em cidades que antes não recebiam investimentos de grandes redes. Essa escolha garantiu capilaridade e gerou vínculo afetivo com públicos muitas vezes negligenciados.
“A marca formou identidade a partir de sua popularidade. Foi uma marca conquistada. Antes de qualquer coisa, pela qualidade do produto e estratégia de negócio. Acabou por criar uma imagem carismática, não no sentido performático, mas pela entrega e proximidade. Isso deveria ser traduzido, valorizado, evidenciado no rebranding. O carisma deveria ser homenageado agora que a marca teve a oportunidade de passar por um processo estruturado de estratégia de imagem.” — Melissa Resch, sócia da VOZ Colab.
O rebranding ignorou a riqueza dessa base tão sólida, tão rara em um cenário de mercado em que tantos negócios começam pela imagem.
De um nome forte a um desenho tosco
“Chiquinho” é nome de gente, uma assinatura com apelo oral, que evoca familiaridade e pertencimento. Ao longo de mais de quatro décadas, esse nome se tornou ativo simbólico. Ele carrega memória afetiva e sustentou sozinho boa parte da identidade da marca.
A substituição do nome no centro do logo por uma ilustração de casquinha desloca o centro de identidade da marca. No lugar de reforçar o ativo linguístico “Chiquinho”, optaram por um símbolo genérico, que qualquer criança ChatGPT faz.
Discurso institucional: promessas genéricas e vocabulário saturado
Na narrativa, frases como “momentos de felicidade”, “sabor e qualidade”, “guiados pela empatia”, “movidos pela fé” não encontram ancoragem. Você consegue perceber tudo isso na imagem? Essas flechas realmente apontam essas leituras no símbolo?
O movimento de mudança foi apresentado ao público sem preparo narrativo. Quando uma identidade está enraizada na memória afetiva de tantas pessoas, esse tipo de transição demanda construção discursiva. Veio sem, e a mudança acabou se tornando o centro das discussões por um viés negativo, em vez de projetar o rebranding como um momento de afirmação e fortalecimento da marca.
É um exemplo clássico do que acontece quando o branding se restringe à superfície estética e ignora o trabalho simbólico da marca, além do valor afetivo construído, conquistado ao longo de décadas. O negócio tinha ativos muito fortes a serem valorizados. Em vez disso, foram dispensados. Uma pena.
*Fonte: Revista Exame, fevereiro de 2025.
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Muito bom e curioso. Eu que cresci e fui vizinha de uma das primeiras lojas, achei o máximo. Que pesa esses deslizes, embora eu nunca tenha gostado do sabor do sorvete deles.